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Piratini Monarquista

A Decadência do Moderno


Cena do filme Play Time (1967), de Jacques Tati



21 de Abril de 1960 ficou marcada na história do Brasil com a inauguração de sua terceira capital e distrito federal: Brasília. Projetada por Lucio Costa e Oscar Niemeyer, a cidade-avião fundamentada nos princípios modernistas pode ser considerada e exemplificada de muitas formas, mas com certeza ela não é uma cidade verdadeira, muito menos uma capital legítima.


Voltemos o nosso olhar ao principal ponto: o modernismo arquitetônico-urbanístico. Este período iniciou-se no final do século XIX e se propagou ao longo do século XX, e foi formado por vários movimentos arquitetônicos e urbanísticos, como o Art Déco, o Art Nouveau, o Brutalismo e o Estilo Internacional. Foi um momento de rejeição aos estilos tradicionais da arquitetura e privilegiava "tudo que é simples, mas que nunca é simplório". Portanto, todo o detalhamento, a criatividade e o exagero da construção era para ser superado, para se criar uma nova arquitetura desprendida dos antepassados; como o seu principal precursor Louis Sullivan disse a respeito desse novo capítulo da história, "a forma segue a função".


A partir deste ideal, muitos arquitetos, urbanistas e engenheiros começaram a trabalhar em cima deste estilo, aproveitando a evolução tecnológica aplicada a construção civil que se seguia. Le Corbusier, um arquiteto suíço, foi um dos principais expoentes deste estilo, cuja contribuição culminou no chamado “Cinco Pontos da Nova Arquitetura” e na “Carta de Atenas”. Através destes, que se definiu como a arquitetura moderna seria regida no mundo, bem como o conceito urbano da cidade funcional, na qual as necessidades do homem estariam claramente colocadas e resolvidas. No entanto, o que se conseguiu foi justamente o oposto: ao racionalizar ao máximo a ocupação, os espaços tornaram-se estéreis, sem vida, e com grandes desafios para manutenção e resolução de problemas de conforto.


Os Cinco pontos e a Carta de Atenas


Os cinco pontos da arquitetura moderna foram definidos nos anos 1920, ao longo do trabalho desenvolvido por Le Corbusier. Foi através destes pontos que a grande maioria dos arquitetos e engenheiros modernistas se basearam na conceituação de suas obras, sendo a Villa Savoye a personificação desse ideal:


Outra diretriz que serviu de direcionamento aos projetistas da época foi a Carta de Atenas. Desenvolvida durante a Quarta Conferência Internacional de Arquitetura Moderna, e redigida por Le Corbusier, esta tratava dos aspectos urbanísticos para a nova cidade, aspectos estes criados a partir da análise de várias cidades na época. A Carta analisa o estado atual e crítico das cidades, propondo aspectos que deveriam ser respeitados para a melhoria da estrutura urbana. Foram propostas as ideias da prevalência do planejamento regional ante ao municipal, de legislação urbanística, de planejamento setorizado, de classificação de vias, além do tratamento com o patrimônio histórico:



As consequências de implementação


Os modernistas queriam se desprender do passado, rejeitando milhares de anos de arquitetura e vivência urbana, o que gerou inúmeros problemas. Não se tem a intenção de falar que é totalmente incorreto a mudança. Cada período na história teve seu momento de vanguarda, e é louvável que apareçam pioneiros que tentem tornar especial o seu trabalho e sua geração no seu tempo. No entanto, jamais se deve deixar de lado a humanidade intrinsecamente ligada a todos os aspectos das atividades laborais e de lazer. Como preconiza Jan Gehl, ”a cidade é para as pessoas”, não para automóveis ou a completa racionalização das funções urbanas. É o “coração” que foi deixado de lado pelos projetistas modernos.


a) Villa Savoye


Esta casa de campo encomendada pela família francesa Savoye, e concluída em 1931, é a construção modernista mais icônica de todas. De autoria de Le Corbusier, nela esta manifesta fisicamente todos os 5 pontos da arquitetura moderna, se tornando um exemplo do ideal do arquiteto para o novo tempo.


No entanto, o que não é compartilhado é que esta residência foi um completo fracasso para habitar. Por muitos anos, Madame Savoye (que era a proprietária) enviou cartas, reclamando de diversos problemas de infiltração e aquecimento:


"Está chovendo no corredor, está chovendo na rampa e a parede da garagem está absolutamente encharcada...... Ainda está chovendo no meu banheiro, que inunda com o mau tempo, quando a água entra pela claraboia. As paredes do jardineiro também estão molhadas."


"perda substancial de calor devido a grandes vidraças".


Durante a 2ª Guerra Mundial, a casa foi assaltada, tornando-a inabitável. Seriam necessárias reformas, mas como a família estava farta da residência que lhe trouxe tudo, menos conforto, eles desistiram e nunca mais voltaram para lá.


b) Unité d'Habitation



A Unite d’Habitation é exemplar de prédio de habitação coletiva. Primeiro de uma série de projetos habitacionais de Le Corbusier, foi construído em Marselha, na França, e concluído em 1952. O edifício tinha como propósito se tornar um lugar para a vida comunitária, com compras, diversão, vivência e socialização – uma “cidade jardim vertical”.


No Documentário da BBC de 1980 “O Choque do Novo”, no seu 4º episódio podemos ver a Unite d’Habitation como um fracasso. O apresentador Robert Hughes comenta:



“É uma metáfora dos objetivos sociais de Corbusier. (...) A Unité significava, enquanto experimento social, um protótipo para a construção em massa. Há uma nobreza áspera neste concreto, ainda que esteja sujo e jamais possa ser liso como a pedra. O piloti, as colunas, tem uma grande forma muscular, embora ninguém use o espaço sob eles para nada e os carros têm de estacionar na área verde. E como habitação a Unité não tem sido um sucesso. Seu emblema é a figura modular de Corbusier, o neto deformado do homem vitruviano e, não intencionalmente, um símbolo do elevado desprezo de Corbusier pelas reais necessidades humanas. Há pouquíssima privacidade nos apartamentos. Muitas salas são pouco maiores do que despensas, a maioria dos mercados do quinto andar fecharam, pois os franceses gostam de mercados de verdade, de sair para a rua – outro fato da vida que o doador de formas não compreendeu. Finalmente, ninguém queria aqueles interiores planos, moralmente elevados com abajures, tapetes, espreguiçadeiras e tapeçaria cubistas. Agora elas estão atulhadas exatamente com o tipo de mobiliário vistoso, contra o qual Corbusier lutou a vida toda. Ele nunca entendeu, porque os franceses as queriam, mas gostavam delas e ainda continuam gostando”.


c) Ville Radieuse


"A cidade de hoje é uma coisa morta,

porque seu planejamento não é na

proporção geométrica.


O resultado de um lay-out

verdadeiramente geométrico é a

repetição, o resultado da repetição é um

padrão.


A forma perfeita"


Le Corbusier



Traçado urbano da Ville Radieuse



A Ville Radieuse (Cidade Radiante) foi um plano urbano nunca implementado, projetado por Le Corbusier e publicado em livro em 1933. Foi projetado focando na eficiência do transporte, no zoneamento de áreas, na abundância de espaços verdes e na simetria e verticalização das edificações. Conforme cita Gili Merin, do site Archdaily, “a Cidade Radiante emergiria de uma tabula rasa: seria construída sobre nada menos que as cidades europeias vernaculares destruídas na guerra. A nova cidade conteria arranha-céus pré-fabricados de alta densidade e idênticos, distribuídos por vastas áreas verdes e organizados em uma grade cartesiana, permitindo que a cidade funcionasse como uma "máquina viva". Este ideal da Villa permanece até hoje na mente e projeção de muitos urbanistas do mundo, sendo duas cidades as tabula rasas manifestas fora do papel: Chandigarh e Brasília.


Chandigarh foi projetada por Le Corbusier, a pedido do governo indiano, para ser a nova capital do estado de Punjab. Nesta cidade planejada, foi aplicado um rigoroso sistema de zoneamento e de Capitólio Central. E, apesar de se ter um ideal monumental interessante, é uma cidade socialmente sem vida e cheia de problemas. Além de já ter uma população acima da prevista por Corbusier, a ideia do carro como meio principal de transporte não vingou, já que os cidadãos ainda optam pelas bicicletas e rickshaws. Outra coisa de importante destaque nessa cidade é a falta do comércio de rua, como denota Mariana Kindle apud Baan, da Revista Casa Vogue:


“Em Brasília, o Centro é marcado pela ausência de vida, que só aparece dentro das casas, nas estações de ônibus e dentro dos carros. Já em Chandigarh, percebe-se que os vãos criados para filtrar a intensa luz daquela parte do mundo passaram a ser utilizados por comerciantes para a instalação de vendas informais, com cobertura improvisada.”


d) Jane Jacobs


A jornalista Jane Butzner Jacobs (Scranton, 1916 – Toronto, 2006) foi uma das principais críticas do modernismo urbano aplicado nas cidades dos Estados Unidos. Em seu livro mais consagrado, “Morte e Vida de Grandes Cidades”, ela ataca em especial um dos pontos mais importantes da Carta de Atenas: a setorização. Contra esse princípio, Jacobs defende a diversidade de usos e edificações como o único meio capaz de garantir a vitalidade urbana. Além das críticas aos ideais de Corbusier e Ebenezer Howard (criador da “cidade-jardim”), Jacobs também aponta as possíveis soluções para a resolução de problemas sociais e urbanos, a partir da observação e análise em diversas cidades americanas:


“É uma coisa que todos já sabem: uma rua movimentada consegue garantir a segurança; uma rua deserta, não. (...) Uma rua com infraestrutura para receber desconhecidos e ter a segurança como um trunfo devido à presença deles – como as ruas dos bairros prósperos – precisa ter três características principais: Primeira, deve ser nítida a separação entre o espaço público e o espaço privado (...). Segunda, devem existir olhos para a rua (...). Os edifícios de uma rua preparada para receber estranhos e garantir a segurança tanto deles quanto dos moradores devem estar voltados para a rua (...). E terceira, a calçada deve ter usuários transitando ininterruptamente, tanto para aumentar na rua o número de olhos atentos quanto para induzir um número suficiente de pessoas de dentro dos edifícios da rua a observar as calçadas.”


Como Jacobs já demonstra, estava se perdendo a noção do óbvio, do humano, no planejamento das cidades do século XX. Sua obra é de vital importância para os planejadores do nosso tempo, e serve de lembrete de como uma cidade jamais deve ser planejada.


“No East Harlem de Nova York há um conjunto habitacional com um gramado retangular bem destacado que se tornou alvo da ira dos moradores. Uma assistente social que está sempre no conjunto ficou abismada com o número de vezes que o assunto do gramado veio à baila, em geral gratuitamente, pelo que ela podia perceber, e com a intensidade com que os moradores o detestavam e exigiam que fosse retirado. Quando ela perguntava qual a causa disso, a resposta comum era: "Para que serve?", ou "Quem foi que pediu o gramado?" Por fim, certo dia uma moradora mais bem articulada que os outros disse o seguinte: "Ninguém se interessou em saber o que queríamos quando construíram este lugar. Eles demoliram nossas casas e nos puseram aqui e puseram nossos amigos em outro lugar. Perto daqui não há um único lugar para tomar um café, ou comprar um jornal, ou pedir emprestado alguns trocados. Ninguém se importou com o que precisávamos. Mas os poderosos vêm aqui, olham para esse gramado e dizem: 'Que maravilha! Agora os pobres têm de tudo!'".



O Aprendizado


O movimento moderno, na tentativa de fazer parte da mudança oportunizada no século XX, gerou consequências gigantes para a arquitetura e o urbanismo do mundo. Embora tenham contribuído na evolução das técnicas construtivas e da memória de alguns itens a se considerar na gestão de uma cidade, de longe fracassaram ao criar um espaço que convida as pessoas a simplesmente viverem nessas construções e ambientes. Ao se desprender do passado, se desligaram também da humanidade. O homem vai além do racional e do geométrico pois ele não é perfeito. Em casa, na rua ou no trabalho, temos muitas funções e realizamos muitas atividades que estão ligadas a vários aspectos da existência do ser social: a conversa, o lazer, o labor, o estudo, a alimentação e a simples contemplação. Tudo isso deve ser levado em conta, para que possamos tentar remediar os erros já cometidos. Devemos realizar a arquitetura do nosso tempo, mas ela deve servir às pessoas e à cultura de um povo, e não aos ideais monumentais de um lunático sem o mínima de empatia.




Para saber mais sobre os efeitos do modernismo na arquitetura, assista o episódio 4 "Problemas na Utopia", da série da BBC "O Choque do Novo" (vídeo legendado):




Referências:


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